quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Film - THE GIFT - LP02


 Lado A
1 Fabric (N. Gonçalves)   3:16
2 Clown (N. Gonçalves/S. Tavares)   3:10
3 Five Minutes Of Everything (N. Gonçalves)   5:35
4 Next Town (N. Gonçalves)   4:45
 Lado B
1 Song For A Blue Heart (N. Gonçalves)   4:28
2 So Free (3 Acts) (N. Gonçalves/S. Tavares)   8:59
3 Actress (AM-FM) (N. Gonçalves/S. Tavares)   6:00

A independência dos The Gift é reforçada por esta altura com a criação da empresa La Folie. A banda passava assim a ter a sua própria editora e o seu próprio estúdio, que começaria a dar frutos na gravação do disco seguinte. 'Film' não beneficiou do conforto do novo estúdio, ainda em montagem, mas já foi editado com o selo da La Folie.

A segunda parte da dupla edição vinil de 'Film' reforça a imagem de uma estética pop inteligente, definida e cuidada, caracterizada por alguma classe e até algum elitismo musical. Se o primeiro disco desta dupla edição em vinil se revelou coeso, eficaz e extremamente acessível, a estrutura do segundo disco define-se como uma viagem audaz que aborda texturas mais arriscadas onde se destaca a relevante metamorfose do extenso downtempo de "So Free", que a par da plenitude pop de "Next Town" corresponde às restantes músicas que Howie B. misturou para esta obra.

Mantêm-se os três pontos singulares que os The Gift fazem questão de ter presente nos seus discos: "Fabric" é o instrumental que funciona como separador e divide o registo em duas partes; a excelência de "Song For A Blue Heart" proporciona a Nuno Gonçalves o seu momento de interpretação, suportado apenas pelo piano com alguns elementos de sonoridade eletrónica; o fecho do registo faz-se com uma faixa que os The Gift pretendem sempre que seja especial, cabendo aqui a honra à atenta moderação de "Actress (AM/FM)" que marca a serenidade desse ponto e ainda deixa uma pista para o próximo álbum.

Perante o elevado nível de qualidade do registo - onde ainda falta enlevar o deleite da intensa sobriedade emocional de "Five Minutes Of Everything", com a devida correspondência no arranjo dos sopros, onde sobressai a elegante harmonia da trompa - não deixa de ser curioso como aparece por aqui uma música como "Clown", composição algo deslocada do habitual, que não iria espantar se fosse cantada em Português, inserida provavelmente em jeito de diversão.

'Film' conclui-se como uma obra de alta categoria que define o seu estilo entre uma sonoridade pop moderna e a importância dos arranjos de cordas cirúrgicos que compõem solenemente a profundidade das composições. Excelência, exigência, bom gosto, esmero e muita vontade em fazer música nova, são alguns dos atributos presentes neste registo e são também essenciais para manter vivo o espírito inovador dos The Gift. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Film - THE GIFT - LP01


 Lado A
1 Front Of (N. Gonçalves/S. Tavares)   6:46
2 Question Of Love (N. Gonçalves/S. Tavares)   3:57
3 Butterfly (N. Gonçalves/S. Tavares)   5:10
Lado B
1 Water Skin (N. Gonçalves/S. Tavares)   3:33
2 Me, Myself And I (N. Gonçalves/S. Tavares)   7:40
3 The Difference Between Us (N. Gonçalves)   5:12

O segundo capítulo, oficial, dos The Gift recebeu o título 'Film' e foi editado em 2001. Um álbum admirável pela forma como a sonoridade dos The Gift amadureceu substancialmente e evoluiu para a firmeza de um registo consistente e definido, que se conclui no detalhe de uma obra ponderada e atenta, e confirma uma autonomia artística inerente. Tal como 'Vinyl', 'Film' foi gravado em casa e depois completado em estúdio, mas as condições e os nomes envolvidos subiram de categoria. 

Um dos grandes responsáveis pela sonoridade de 'Film' é Howie B., nome associado, entre muitos outros, a trabalhos com Björk e U2, que ainda trouxe consigo o engenheiro de som Will O'Donovan. Artista caro para fazer a produção do álbum, Howie B. aceitou ainda assim fazer a mistura de seis músicas. No primeiro disco da edição dupla em vinil, as músicas "Front Of", "Question Of Love", "Water Skin" e "The Difference Between Us" são as que contêm a sua assinatura. Will O'Donovan regressaria sozinho, numa fase posterior, para ajudar a concluir o trabalho de mistura, com Joe Fossard. 

A Inglaterra serviu como pano de fundo para o avanço de 'Film'. Nuno Gonçalves fez um pequeno retiro em Londres para conhecer melhor o mercado fora de portas, fazer contatos e procurar um produtor, foi assim que chegou a Howie B., e as cordas foram, desta vez, gravadas em ... Inglaterra. A ambição da jovem banda de Alcobaça começava a não conhecer limites e era também por aí que os The Gift se destacavam das restantes bandas nacionais.

As músicas de 'Film' mantêm a aparência já evidenciada em 'Vynil' mas percebe-se, logo à primeira audição, que este é um trabalho mais profissional. O cruzamento de elementos eletrónicos com alguns arranjos orquestrais conhece agora uma fase mais equilibrada em que as cordas surgem menos evidentes mas muito melhor enquadradas, assim como há uma menor intervenção dos instrumentos de sopro mas aparecem sempre bem aplicados nos momentos certos. E há até lugar para uma peça de caráter experimental com recurso a tablas e guitarra clássica.

Cabe a "Front Of" fazer a transposição de 'Vinyl' para 'Film'; música que os The Gift já tocavam ao vivo na sequência final dos concertos da Vinyl Tour. Posiciona-se como um excelente aperitivo para o que se segue e transparece no crescente florescer de uma composição imponente. "Question Of Love" é agraciada pela doce simpatia de uma melodia alegre, irresistível e contagiante, que a par da profundidade maquinal de "Water Skin" marcam ambas os singles de amostra. O aparente exotismo de "Me Myself And I" prolonga-se na serena infinidade artística de uma peça longa e complexa enquanto que flutuante graciosidade cinematográfica de "Butterfly" e a exponencial "The Difference Between Us" resulta como duas músicas incríveis. Temos disco, e ainda falta a segunda parte ...

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Vinyl - THE GIFT - LP02


 Lado A
1 Changes (N. Gonçalves/S. Tavares)   4:20
2 Ok! Do You Want Something Simple? (N. Gonçalves)   4:24
3 Truth (N. Gonçalves/S. Tavares)   4:50
4 Concret (N. Gonçalves)   4:41
 Lado B
1 Weekend (N. Gonçalves/S. Tavares)   6:37
2 First Chapter (N. Gonçalves/S. Tavares)   4:53
3 How The End ... Always End (N. Gonçalves/S. Tavares)    4:23 

'Vinyl' é, naturalmente, uma consequência direta de 'Digital Atmosphere'. O período de tempo que separa as duas gravações é de aproximadamente um ano e meio, durante o qual, perante a falta de interesse das editoras, os The Gift tiveram a perceção de que era urgente gravar um trabalho mais a sério, com recurso a equipamento mais profissional. A principal diferença entre estes dois registos reside precisamente neste ponto, o estúdio.

Em estúdio, a falta de experiência dos The Gift e a urgência em despachar as gravações para não esticar o orçamento, foi a própria banda quem suportou os custos de aluguer do estúdio, terá precipitado a qualidade sonora do álbum mas, ainda assim, 'Vinyl' é um registo bem conseguido e eficaz que, curiosamente, até soa melhor atualmente. 'Vinyl' marca não só uma fase decisiva para os The Gift como também marca uma nova etapa para a música feita em Portugal

Consequência evidente da proximidade entre os dois registos, é difícil não sentir ainda o espectro do aprazível 'Digital Atmosphere' a pairar sobre o mais amadurecido 'Vinyl'. Duas das músicas de 'Digital Atmosphere' foram recuperadas, e renovadas, para esta edição; "Dream With Someone Else's Dream", já mencionada no primeiro disco desta dupla edição em vinil, e neste segundo disco está "Changes", agora revestida com uma tímida, mas convicente, abordagem drum 'n bass. Encontram-se também por aqui as músicas "Truth" e "First Chapter" que a banda já incluía no alinhamento ao vivo de 'Digital Atmosphere'; a que ainda se podem juntar "Time" e "Real (Get Me For)", ambas já referidas no primeiro disco desta edição.

"Truth" tem caráter épico. Uma música muito expressiva em que a voz de Sónia Tavares enche todo o espaço em redor, suportada pelo consciente dramatismo das cordas e dos sopros. "First Chapter" começa por soar enigmática, desenvolvendo-se depois para uma sedutora estrutura trip hop, interrompida, momentaneamente, por compassos de valsa, e contém uma curiosa secção lírica em que Sónia Tavares faz referência as todas as músicas incluídas no alinhamento do álbum. 

Apesar de Nuno Gonçalves assumir todo o trabalho de composição dos The Gift, é em "Concret" que ele tem o seu momento. Uma faixa muito pessoal, que marca a diferença pelo acentuar da sua estética eletrónica e por ser a única música em que Nuno canta. A descontração de "Weekend" marca outro ponto interessante em 'Vinyl' por ser uma faixa totalmente orgânica, não há máquinas envolvidas. É usada uma bateria acústica, tocada por Diogo Santos, e é também a faixa mais longa da edição. Confirmando que no final tudo acaba, sempre ... no fim, "How The End ... Always End" encerra na intimidade dualidade de uma peça piano/voz. Segundo Nuno Gonçalves, esta é uma música especial para ser tocada apenas no final de momentos especiais.

E depois, à parte de todo o álbum, uma referência especial para "Ok! Do You Want Something Simple?", a música que despertou, realmente, toda a atenção na banda de Alcobaça. Composição desenvolvida numa fase já tardia da conceção do disco mas ainda a tempo de fazer mossa e abrir o caminho para que os The Gift se afirmassem definitivamente no complexo panorama da música feita em Portugal. 'Vinyl' conclui-se como uma obra de afirmação urgente que o tempo justificou. 

domingo, 14 de setembro de 2025

Vinyl - THE GIFT - LP01


 Lado A
1 Nowadays (N. Gonçalves/S. Tavares)   3:54
2 My Lovely Mirror (N. Gonçalves)   4:32
3 Time (N. Gonçalves/S. Tavares)   4:08
4 Real (Get Me For) (N. Gonçalves/S. Tavares)   5:58
 Lado B 
1 Love Boat (N. Gonçalves/S. Tavares)   3:19
2 Dream With Someone Else's Dream (N. Gonçalves/S. Tavares)   5:13
3 Ouvir (N. Gonçalves/S. Tavares)   4:25
4 La Folie (N. Gonçalves)   3:09

Em 1997, os Alcobacenses The Gift esmeraram-se na preparação da sua primeira prenda em formato físico. Foi-lhe atribuído o título de 'Digital Atmosphere' e tinha o intuito de servir como uma simpática amostra do seu trabalho. Constava de um CD, gravado em casa, composto por seis músicas originais e algum conteúdo multimédia, que inclui um vídeo para "Dream With Someone Else's Dream". Era uma apresentação original, honesta e determinada, algo formal, que pretendia mostrar a existência dos The Gift e divulgar a sua enorme vontade em fazer música. No entanto, nenhuma editora se interessou pelo seu conteúdo, apontando muitas vezes ao facto de a banda se expressar em Inglês como sendo um contratempo editorial ... 

Mas um dos grandes trunfos dos The Gift assenta na firme crença que o grupo nutre pelo valor da sua música. Acreditaram sempre que a sua música era especial e foi essa mesma determinação que serviu de impulso e motivação para prosseguirem na demanda em mostrar o seu trabalho; e era na estrada que os The Gift recebiam genuínos louvores de reconhecimento pela sua música.

Editado em 1998, 'Vinyl' corresponde, oficialmente, ao primeiro álbum dos The Gift. Apesar de tão sugestivo título, o registo foi apenas editado em formato de CD - em edição de autor - sendo alvo de uma reedição em formato de duplo vinil em 2008, correspondente à edição aqui exposta. Os The Gift iam crescendo na estrada e o álbum, de forma natural, ia também ganhando o seu espaço. Tal como 'Digital Atmosphere', 'Vinyl' foi gravado em casa mas sentia-se então que estava na altura de ir mais além e era necessário levar o álbum para estúdio para ser montado e concluído sob a supervisão de um produtor exterior à banda. Joe Fossard foi o nome escolhido para assumir o cargo.

Dependendo, unicamente, deles próprios, os The Gift começaram por procurar inspiração na contemporaneidade de bandas da sua afeição, de forma a criar um som moderno e atual. Atraídos pelas cores, aromas, ambiente e ritmo, do trip hop, downtempodrum 'n bass, fundiram habilmente os estilos correntes e maquinais com a orgânica classicista das cordas e dos instrumentos de sopro, e assim criaram a singular e inebriante estética que 'Vinyl' irradia. Não é por isso de estranhar que ao longo do registo surjam apontamentos que remetam para nomes como, Portishead, Smoke City, Björk ou Michael Nyman. 

No primeiro disco desta dupla edição em ... vinil, "Nowadays" assinala um arranque destemido e ousado, já revelador da fusão maquinal/orgânica que carateriza o registo. Segue-se a íntima cumplicidade de "My Lovely Mirror" que cola com a ingénua graciosidade de "Time", faixa que ainda remete ao cândido ambiente de 'Digital Atmosphere'. O lado A conclui de forma curiosa com o cativante aroma latino de "Real (Get Me For)", fortemente estimulado pela vivacidade do arranjo dos instrumentos de sopro, com assinatura do saxofonista Mário Marques. 

O lado B inicia com a dinâmica neo-classicista de "Love Boat", que acrescenta uma nova estética ao álbum, e passa logo para "Dream With Someone Else's Dream", um dos diamantes em bruto de 'Digital Atmosphere', devidamente polido para esta edição. "Ouvir" assinala a única música do registo cantada em Português e surge sob o embalo de uma leve brisa jazz mas conclui-se na dissonância das cordas. A última peça do primeiro disco é "La Folie", que na edição em CD está estrategicamente posicionada a meio do alinhamento. Um pequeno instrumental, de caráter minimalista, com função de servir de separador e de desanuviar, ligeiramente, a sequência do álbum. O nome La Folie seria depois adotado (oficialmente) pela banda para a sua denominação empresarial.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

HIGH RADIATION 2 - VÁRIOS


1 Consistent Fear - ENCANCRATE   3:48
2 Without A Name - PSYCHO MANIACS   5:10
3 Enchantation In The Dark Night - ORATORY   4:45
4 A Dream - OBSCENUS   3:22
5 Parts Of A Whole - CASABLANCA   3:43
6 Down Your Veins - CURSE   3:38
7 Not My World - KAMIKAZES   3:50
8 Our Sins - VERTEBRA   5:18
9 Alienated - DISTRUST   3:42
10 Sombras Do Desconhecido - ETERNAL MOURNING   5:35   
11 Unbelieveness - NECROPSY   3:43
12 Enemies Of Gods - AGONIZING TERROR   2:25
13 A New God Had Been Created - DEIFICATION   5:15
14 Flames Of Dearly - EXHAUSTED   8:01
15 Hell Is Here - SAD   2:48
16 Lord Satan - UNBURN   6:15
17 Esoteric Cosmic Creation - DYING SEASON   5:29

Editada em 1996 pela Independent Records, editora independente Portuguesa sediada em Gaia, esta é a segunda compilação da série High Radiation, composta por um total de quatro edições em CD inteiramente focadas no panorama da música de índole mais pesada que se fazia, à data, por terras lusitanas. O forte manancial destas coletâneas reside na exponente oportunidade de divulgação de bandas que dificilmente alcançariam patamares mais elevados, aqui bem evidenciado por se tratar de um género musical que subsiste essencialmente num circuito legítimo e mais restrito.

É uma coletânea de emoções fortes que reúne maioritariamente bandas da área de Lisboa e do grande Norte, com apenas três bandas a representar alguma centralização regional - Agonizing Terror, de Aveiro, Deification, de Ílhavo, e Unburn, da Guarda. De entre os vários estilos musicais que predominam o género, o doom metal e o death metal marcam a maior presença nesta edição, onde também se manifesta a pujança do thrash e a enérgica celeridade do hardcore

O circuito marginal em que estas bandas subsistem não deixa muito rasto, o que dificulta o acompanhamento do seu historial. No entanto, através de uma pesquisa atenta ao registos destas bandas na plataforma Discogs, com alguma margem de erro evidente, permite concluir que:

-Necropsy, SAD e Distrust, apenas gravaram para esta coletânea. Os Psycho Maniacs têm registo de ter gravado para três coletâneas, esta incluída. Os Distrust ainda gravaram um álbum em 2002 mas sob uma nova denominação, Mechanica Sundown.

-As bandas, Encancrate, Obscenus, Curse, Vertebra, Deification, Exhausted e Dying Season, apenas gravaram em formato de cassete e contam com participações em outras coletâneas.

-Os Oratory, Eternal Mourning e Agonizing Terror, para além das habituais cassetes também editaram álbuns. Oratory editaram dois álbuns originais (CD), em 2000 e 2002, Eternal Mourning editaram três álbuns originais (CD), em 1999, 2003 e 2006, Agonizing Terror editaram uma compilação (CD) em 2015, que reúne o conteúdo das cassetes mais dois inéditos do período inicial.

-Os Casablanca contam atualmente com cinco álbuns de originais já editados, LP em 1990 e quatro CD em 1996, 1999, 2002 e 2023. Os Kamikaze têm dois álbuns (CD), 1999 e 2004, e os Unburn, para além de participarem em três coletâneas, gravaram um CD EP, em 1997.

A firmeza thrash dos Encancrate e Vertebra, o doom detalhado dos Eternal Mouning e Exhausted, a alienação death dos Distrust e Deification, o gothic metal dos Oratory e a solidez hardcore dos Kamikaze, sobressaem como os momentos mais determinantes da compilação. Por entre algumas das curiosidades salientam-se os Eternal Mourning como a única banda que se expressa totalmente em Português e os Casablanca como a banda mais antiga e mais experiente a participar nesta compilação; formaram-se em 1982 como Valium e tornaram-se Casablanca em 1988.

É um facto que nenhuma destas bandas alcançou patamares elevados, mal saíram do anonimato e muitas terão resumido a sua existência a participações em concursos de música a nível nacional, mas a inclusão nestas compilações dava-lhes alguma animosidade e a oportunidade de se exporem como parte integrante do circuito do género. A edição manifesta-se como um testemunho obscuro, macabro, demoníaco, gutural, crú e até progressivo, da sua assombrosa passagem pelo panorama musical Português mais marginal.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Rock É! Dançando Na Noite - UHF


1 Quando (Dentro De Ti) (António M. Ribeiro)   3:02
2 Sr. Ministro (Que Escola É Esta) (António M. Ribeiro)   3:30
3 Guantanamera (J. Marti/José F. Diaz/arr: António M. Ribeiro)   3:47
4 Ao Fim De Tanto Tempo (António M. Ribeiro/Marco C. Cesário)   3:30
5 Meninos Angolanos (António M. Ribeiro/Jorge M. Costa)   3:51
6 Só Eu Sei Porquê (António M. Ribeiro/A. Côrte-Real)   3:38
7 Se Fosses Minha (António M. Ribeiro/A. Côrte-Real)   3:48
8 Margarida (Num Jardim) (António M. Ribeiro/Marco C. Cesário)   3:08
9 Voluntariamente Só (António M. Ribeiro/Marco C. Cesário)   4:23
10 Tudo Se Move À Procura (António M. Ribeiro)   4:25
11 Boogie Com O Sr. U (António M. Ribeiro)   3:08
12 Dançando Na Noite (António M. Ribeiro)   5:07

A instabilidade criada pela constante rotatividade de músicos que integraram diversas fases dos UHF, desde que a formação clássica - António Manuel Ribeiro, Renato Gomes, Carlos Peres e Zé Carvalho - se desfez definitivamente, em 1986, terá sido prejudicial para a imagem da banda que, apesar de manter a relevante importância do estatuto histórico no eclodir, definitivo, do rock em Portugal, perdeu grande parte do carisma que detinha nos primeiros anos. António Manuel Ribeiro, o único elemento da formação inicial que nunca desistiu dos UHF, fez da banda o seu cavalo de corrida numa luta desenfreada pela sua afirmação como artista profissional.

O passo maior foi dado em 1997, quando António Manuel Ribeiro criou a editora AM.RA Discos e passou a ter controlo sobre a obra dos UHF. Alcançada a independência editorial, deixaram de haver obrigações contratuais e o catálogo da banda é agora gerido pelo seu líder sem necessidade de dar satisfações a ninguém. O álbum 'Rock É! Dançando Na Noite' é o primeiro registo a ser editado sob a alçada da nova editora. Corresponde ao nono trabalho de estúdio dos UHF e integra a celebração de vinte anos de carreira da banda.

Editado em 1998, em formato CD, o registo inscreve-se num novo capítulo da brava saga dos UHF pelos meandros do rock feito em Portugal. Apostando na vitalidade de uma formação jovem, esta é uma obra refrescante que se desenvolve sob o equilíbrio de duas dinâmicas distintas; com António Manuel Ribeiro a assumir autoria de metade do álbum e a repartir a composição da restante metade com alguns destes músicos. Há ideias bastante boas, há canções de categoria e um bom trabalho de guitarras, soa atual, envolvente e consolidado, mas a corajosa adaptação rock para "Guantanamera" era dispensável. Com uma leitura atenta e sintetizada, resume-se o álbum desta forma:

"Quando (Dentro De Ti)" é um single esclarecedor, impregnado com a verdadeira essência do 'rock português'. Um início resoluto para a afirmação deste trabalho que perde logo em "Sr. Ministro" e em "Guantanamera" a oportunidade de uma sequência airosa e eficaz que definisse um arranque convincente. O registo volta a ganhar alento com a harmoniosa serenidade de "Ao Fim De Tanto Tempo", tendo continuidade na etérea transparência musical de "Meninos Angolanos". De seguida, o rock liberta-se com "Só Eu Sei Porquê", expõe-se imprevisível em "Se Fosses Minha", é interrompido por "Margarida" - sob o espetro tonal do arpejar de uma bonita balada em modo acústico - e reaparece possante para "Voluntariamente Só". A sequência final inicia com a intrigante ambiência pop/rock de "Tudo Se Move À Procura", apenas quebrada pela afirmação de um refrão consolidado, passa pela eletricidade do flagrante riff da guitarra de António Côrte-Real em "Boogie Com O Sr. U", e fecha definitivamente na aura acústica da faixa homónima para um final ponderado e ainda assim bem expressivo.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

La Pop End Rock - UHF - CD02


1 É Malhar! É Malhar! (António M. Ribeiro)   0:57
2 Dei-lhe Carros E Prendas (António M. Ribeiro)   3:57
3 End Rock? (António M. Ribeiro)   1:09
4 Raiva End Roll (António M. Ribeiro)   2:19
5 Fã Número Um (Sou Eu E + Nenhum) (António M. Ribeiro)   2:14
6 Os Putos Vieram Divertir-se (António M. Ribeiro)   3:29
7 O Conselho Da Fada (António M. Ribeiro)   2:37
8 Em Tribunal (IV) (António M. Ribeiro)   1:03
9 Tu Mordes E Eu Deixo (António M. Ribeiro)   2:40
10 Por Uma Guitarra Eléctrica (António M. Ribeiro)   1:23
11 Eu Escolhi A Estrada Certa (António M. Ribeiro)   4:55
12 Aqui Vamos Nós/Sem Disfarce (António M. Ribeiro)   5:04
13 Memórias De Hotel (António M. Ribeiro)   4:58
14 Por Três Minutos Na Vida (António M. Ribeiro)   4:20
15 O Fim. The End? (António M. Ribeiro)   0:32
16 La Pop End Rock (António M. Ribeiro)   3:17
17 Ai Eme Ra (António M. Ribeiro)   1:24
18 O D.J. É Um Rei (António M. Ribeiro)   3:40

Ao segundo cd desta dupla edição, a história ficcionada com base no percurso dos UHF mantém, naturalmente, os moldes temáticos da 'primeira parte', adicionando simplesmente alguns detalhes de composição. Os interlúdios, ao jeito de um coro Grego, continuam a cumprir com o seu papel, surgem logo de início em "É Malhar! É Malhar" e depois "Em Tribunal (IV), a estrutura musical da predição da fada regressa como "Conselho Da Fada", e percebe-se agora que a peça instrumental "Por Uma Guitarra Elétrica" corresponde a um dos breves trechos que integram a intro de abertura para esta obra conceptual.

O preço da fama é elevado e o artista paga-o de diversas formas. "Dei-lhe Carros E Prendas" é um dos momentos musicais mais bem conseguidos do registo, com uma canção concisa e esclarecedora que evoca a aspereza das dissidências conjugais. Rock moderado e sincero, que se mostra mais decidido em "Raiva End Roll" e mais polido em "Eu Escolhi A Estrada Certa", seguindo destemidamente para a nobre excelência de "Aqui Vamos Nós/Sem Disfarce" e para a distinta abordagem de um novo capítulo musical com a inserção de elementos eletrónicos na exuberância de "Memórias De Hotel". O rock imberbe e orelhudo de "Os Putos Vieram Divertir-se" já ficou para trás.

O alinhamento do cd é também marcado pela aparição de alguns apontamentos acústicos, onde sobressai "Fã Número Um (Sou Eu E Mais Nenhum)" que António Manuel Ribeiro interpreta a solo. "End Rock" manifesta-se na brevidade de um instrumental acústico que prepara a passagem para outras atmosferas, enquanto a graciosa intimidade lírica de "Tu Mordes E Eu Deixo" e "Por Três Minutos Na Vida" é suportada por dois bonitos arranjos - a guitarra acústica em "Tu Mordes ... ", a que se junta o piano em "Por Três Minutos ... ". O final é anunciado com outro breve trecho instrumental acústico, "O Fim, The End".

Mas ainda há direto a encore e, como não podia deixar de ser, o rock ainda predomina para "La Pop End Rock", a faixa que dá título a esta obra. A designação "Ai Eme Ra" é relevante para o percurso dos UHF, que em 1997 rescindiram contrato com a BMG/Ariola e criaram a sua própria gestora de atividades, usando esta mesma denominação. "Ai Eme Era" enquadra-se na história da banda como um ponto de viragem e manifesta-se como uma faixa enigmática em rotação invertida, que o ouvido mais atento deverá identificar como o final invertido de "Aqui Vamos Nós/Sem Disfarce". No fim, como já passou a ser habitual, a festa pertence mesmo a "O D.J. É Um Rei". 

Para além de comemorar os 25 anos de atividade artística dos UHF, o registo marca o início do percurso da banda com o núcleo mais duradouro da sua existência. O guitarrista António Côrte-Real - filho de António Manuel Ribeiro - e o baterista Ivan Cristiano, são ainda elementos da formação, enquanto que o baixista Fernando Rodrigues acompanhou a formação por cerca de vinte anos, entre o baixo e as teclas, mas já não faz parte da mesma. Fundamental também a participação dos músicos convidados no resultado final desta obra: Jorge Manuel Costa, que já tinha colaborado no álbum anterior, funciona aqui como um 'quinto elemento' da banda para tudo o que é teclas; Orlanda Guilande distingue-se com a nobreza de uma enorme presença vocal; Alexandre Manaia aparece bem distinto, no orgão, em "Um Anjo No Meu Quarto", "Dei-lhe Carros E Prendas" e "Memórias De Hotel"; Fernando Abrantes faz o solo de piano em "Eu Escolhi A Estrada Certa"; Mário Lopes acompanha ao piano em "Eu Escolhi A Estrada Certa" e está no orgão em "La Pop End Rock"; Nuno Flores emprega a arte dos instrumentos de arco em "Sem Disfarce".

É um registo diferente dos trâmites habituais da banda, pensado para ser representado num palco com coreografia e intérpretes, o que nunca chegou a acontecer.



domingo, 1 de junho de 2025

La Pop End Rock - UHF - CD01


1 Nascer/Os Primeiros Acordes (António M. Ribeiro)   3:51
   a) Nascer
   b) Os Primeiros Acordes
   c) Comprei Uma Guitarra Eléctrica
   d) Uma Hora Fantástica (Na Garagem)
2 Sem Disfarce (António M. Ribeiro)   2:07
3 O Presságio Da Fada (António M. Ribeiro)   2:06
4 O Primeiro Concerto (António M. Ribeiro/F. Delaere)   3:54
5 E Ele Escreveu Genial (I) (António M. Ribeiro)   0:55
6 Um Anjo No Meu Quarto (António M. Ribeiro)   4:57
7 Fora Da Garagem, Já! (A. Côrte-Real)   1:22
8 Quero Um Lugar No Top Inglês (António M. Ribeiro)   1:16
9 O Velho Pastel De Belém Rosna (António M. Ribeiro)   1:22
10 Uma História Com (A)Gente (António M. Ribeiro)   3:38
11 A Legenda E A Lenda (II) (António M. Ribeiro)   1:07
12 Era Nani (E Era Minha) (António M. Ribeiro)   3:42
13 Rumo Ao Céu (Não Dói Nada) (António M. Ribeiro)   4:52
14 Do Céu Ao Inferno (António M. Ribeiro)   6:31
15 Joey Ramone (Tributo) (António M. Ribeiro)   3:16
16 A Noite Inteira (António M. Ribeiro)   1:12
17 A Lágrima Caiu (António M. Ribeiro)   4:46

Para todos os efeitos, 'La Pop End Rock' é uma obra conceptual, de caráter autobiográfico, em que António Manuel Ribeiro, um eterno resistente, desde 1978, do denominado rock Português, celebra 25 anos de atividade artística inspirando-se no percurso dos UHF onde ainda permanece como único elemento da formação original. Esta é uma história feita de episódios - e momentos - romanceados que também podiam pertencer ao corolário de muitos outros músicos.

O conteúdo do registo desenvolve-se em dois cd, sob os contornos de uma auspiciosa "opereta rock" que progride ao sabor do sonho, da aventura, da ousadia e ambição, com uma estrutura ponderada e bem equilibrada entre o desenrolar da história e a consequente sequência musical. A obra começou a ganhar raízes no Outono de 2000 e foi editada em 2003

A história começa a desenhar-se na subtileza etérea de uma intro com sabor progressivo, na forma de uma peça instrumental que se reparte por quatro pequenos trechos que representam o princípio do artista; "Nascer/Os Primeiros Acordes". Ainda com cautela, é ao som da doce intimidade do piano e da nobre solenidade das cordas de arco que a timidez destes quatro putos se começa a desvanecer "Sem Disfarce". A predição divina surge determinante e concisa em "Presságio Da Fada" incitando à aventura e o rock acaba mesmo por se revelar com "O Primeiro Concerto".  

Lançadas as bases, logo chegam as primeiras notícias, as críticas, a divulgação e os inevitáveis mexericos. O alinhamento do primeiro cd inclui dois interlúdios que funcionam ao jeito de um coro grego que apregoa as mediáticas "E Ele Escreveu Genial (I)" e "A Legenda E A Lenda (II)", e ainda ri do desdém de "O Velho Pastel De Belém Rosna" e exprime a sua terna devoção para ficar "A Noite Inteira". Pode ainda incluir-se neste peculiar lote de apontamentos musicais a imponência instrumental de "Fora Da Garagem, Já!", o sarcasmo de "Quero Um Lugar No Top Inglês" e "Uma História Com (A)Gente", divertida manifestação de um momento típico que muitos músicos conhecem de ginjeira.

UHF é rock e, apesar deste registo ser uma obra mais detalhada, a adrenalina sobressai nos seus momento adequados. Revelou-se em "O Primeiro Concerto", soa mais convencional e orelhuda com "Era Nani (E Era Minha)" e reaparece bem determinada para um tributo a Joey Ramone, o emblemático vocalista dos Ramones que faleceu em 2001, ainda os UHF estavam a gravar este álbum. A relevância deste tributo reaviva a memória de um momento inesquecível para os UHF quando foram a banda de abertura para as três noites de concertos que os Ramones fizeram em Portugal - Porto e Lisboa - em Setembro de 1980. 

A resenha do primeiro cd conclui-se com um breve destaque para as músicas mais distintas do alinhamento. Conscientemente ou não, é neste parágrafo que se encontram as músicas que evocam dois grandes mitos do rock'n roll - o sexo e as drogas; "Um Anjo No Meu Quarto" é uma peça de rock comedido que permite absorver a essência do rescaldo do artista num quarto de hotel sob a forma de uma nova mulher, o fascínio da veneração, "Rumo Ao Céu (Não Dói Nada)" expõe a oportunidade de cair na tentação estupefaciente, elevada pela crescente amplidão musical que conduz à refletida propagação de um momento de devaneio - à la Jim Morrison - bem sustentado pelo controlo rítmico que banda impõe religiosamente. A primeira parte da obra conclui com a competente ligeireza pop de "A Lágrima Caiu".

O próximo ato prossegue de seguida com o segundo cd ... 

quinta-feira, 15 de maio de 2025

In Tenebris - ROSA CRVX

 

1 Adorasti (Rosa Crvx)   3:24
2 In Tenebris (Rosa Crvx)   4:19
3 Terribilis (Rosa Crvx)   4:03
4 Arcvm (Rosa Crvx)   5:52
5 Sacrvm (Rosa Crvx)   4:13
6 Procvmbere (Rosa Crvx)   4:06
7 Svrsvm Corda (Rosa Crvx)   4:07
8 Omnes Qvi Descendvnt (Rosa Crvx)   3:51
9 Salve Crvx (Rosa Crvx)   4:40

Os Franceses Rosa Crvx mantêm ainda atividade ao vivo, desde 1994, mas não editam trabalhos originais em formato físico desde 2002, o ano de edição deste 'In Tenebris' que conclui a obra desta formação em apenas três álbuns originais editados em formato CD, entre 1995 e 2002. Todas as edições posteriores correspondem a compilações bem cuidadas, havendo ainda a fantástica curiosidade desta publicação coincidir com a recente apresentação de um novo single, em formato digital (FLAC), intitulado "1335". 

Um projeto musical muito bem definido desde o seu início, quando Olivier Tarabo e Claude Feeny se conheceram, em 1984, na Escola de Belas Artes de Rouen, França, envoltos pela ambiência histórica de um antigo ossário, ladeado por esculturas sinistras que evocam morte e religião. Impressionados e motivados pela força mística de um local que está também associado aos anos tenebrosos da peste negra, os dois estudantes desenvolveram ali o perfil estético que moldou a sua identidade artística como Rosa Crvx - negro, marcial, medieval, ritualista, expresso unicamente em Latim tendo como base textos antigos de bruxaria.

Fazendo questão de marcar o seu território com uma identidade muito própria, a distinta sonoridade dos Rosa Crvx assenta num cariz profundamente gótico em que a guitarra elétrica de Olivier Tarabo parece fomentar uma inclusão rock, nomeadamente em "Adorasti", "In Tenebris" e "Terribilis", mas logo se percebe que o caminho não é esse. A essência do registo expõe-se em nuances autênticas que oscilam entre a solenidade litúrgica de "Arcvm" e a altivez instrumental de "Sacrvm", a expressividade neo-classicista de "Svrsvm Corda" e a relevância marcial de "Procvmbere", até ao pungente ritualismo de "Omnes Qvi Descendvnt" e um final, quase redentor, ao sabor do cântico "Salve Crvx".

Um dos grandes artifícios dos Rosa Crvx é a incrível bateria MIDI que aparece denominada nos créditos dos seus registos como BAM (Batterie Acoustique MIDI). Trata-se realmente de uma estrutura de percussão acústica composta por timbalões e caixas que são percutidos por braços mecânicos - robotizados - programados em MIDI. Uma segunda estrutura, o carillon, consiste numa armação em madeira composta por sinos de várias dimensões que estão conetados, individualmente, por corda a uma espécie de teclado, sendo depois executado como tal. A BAM é percetível ao longo de todo o registo, o carillon está bem destacado em "Terribilis".

terça-feira, 29 de abril de 2025

The Jazz Composer's Orchestra - THE JAZZ COMPOSER'S ORCHESTRA - LP02


 Lado A
Communications #11 - Part 1 (Mantler)   15:10
 Lado B
2 Communications #11 - Part 2 (Mantler)   17:47

O segundo disco desta dupla edição é totalmente preenchido com a peça "Communications #11" que se divide, integralmente, pelas duas faces do disco. Este é um momento de improvisação pura, em autêntico estado bruto, corroborado pela ousadia de um desenlace frenético e avassalador sob a imponência da agressividade tonal da prestação do pianista Cecil Taylor, o solista desta peça. Movido por intuição ou por um verdadeiro rasgo de genuinidade, o impacto da entrega de Cecil Taylor é tremendo e revelador da sua autoridade nos domínios estéticos do movimento free jazz.

Part I
Cecil Taylor surge integrado, logo de início, no plano ordenado da orquestra, movendo-se já numa esquizofrenia tonal de proporções anárquicas que se vão desenvolvendo até atingir a sua integridade já num patamar muito sui generis, em que apenas a secção rítmica se mantém em jogo, com o baterista Andrew Cyrille a sobressair cadencialmente ao lado de Cecil Taylor. A peça cresce ao ponto de tal frenesim em que o próprio Cecil Taylor acaba por preencher a posição ocupada anteriormente pela orquestra, que ainda retorna para um discreto remate final da primeira parte da peça. 

Part II
A dinâmica estrutural da segunda parte da peça apresenta-se mais desenvolta, o que permite uma libertação total de Cecil Taylor e torna-o definitivamente na orquestra. É um ato de protesto ou a 
simbólica metamorfose de um elemento coletivo na força expressa da extraordinária sobreposição da individualidade sob a altivez dos valores revolucionários e da arte mais abstrata. A orquestra acaba por retomar a sua posição, prudentemente, para conduzir a última secção e completar, no plano inverso, o ciclo iniciado na primeira parte da peça.

Obra muito intensa para ouvidos mais sensíveis e pouco habituados a experiências sonoras imprevisíveis. Intencionalmente complexa e provocante, a obra da Jazz Composer's Orchestra propõe-se de forma inovadora e arriscada perante a supremacia das instituições que proclamam quais os desígnios a seguir. Liberal, espontânea e intelectual, porque há realmente um conceito a seguir, o coletivo liderado por Michael Mantler mostra aqui a força da sua convicção em lutar pelo direito de ser uma entidade original, autêntica e integra.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

The Jazz Composer's Orchestra - THE JAZZ COMPOSER'S ORCHESTRA - LP01


  Side A
Communications #8 (Mantler)   13:52
Communications #9 (Mantler)   8:08
 Side B
Communications #10 (Mantler)   13:26
2 Preview (Mantler)   3:23

Em 1968, sob a liderança do trompetista e compositor Michael Mantler, a Jazz Composer's Orchestra reunia alguns dos músicos mais representativos do movimento free jazz nos finais da década de 1960. A orquestra pretendia afirmar-se como uma unidade de protesto, ao nível de uma instituição política e social, em que os músicos pudessem explorar a sua veia criativa sem depender de exigências editoriais e comerciais. No fundo, procurava-se elevar a força expressiva do free jazz ao nível corporal de uma orquestra. 

Nestas sessões, Michael Mantler deixou o trompete de lado e focou a sua atenção no trabalho de composição, produção e regência da orquestra. Apesar do conceito liberal que envolve esta música, há regras a cumprir; há música escrita e um maestro para assegurar que a obra segue o caminho estruturado; só os solistas, também eles compositores, estão autorizados a exteriorizar a sua palavra, o seu grito, como uma convulsão sonora imediata e espontânea. Para além de se tratar de uma peça musical original, com caráter vanguardista, é uma obra de arte determinadamente radical e ofensiva, movida pelo empenho genuíno do seu cariz ativista. É também uma referência na evolução da música improvisada. 

O primeiro disco, desta dupla edição em vinil, integra quatro peças que foram gravadas em períodos diferentes; "Communications #8" foi gravada em 24 Janeiro de 1968, enquanto que as restantes três peças foram gravadas em 8 Maio de 1968. A orquestra é composta por 21 elementos e sofre algumas alterações entre as datas. 

"Communications #8" é uma peça transversal que discorre ao jeito de um intercalar de diálogos imprevisíveis. É o único momento do registo em que participam dois solistas; Don Cherry em cornetim e Gato Barbieri em Sax tenor. É Don Cherry quem intervém primeiro como solista, após a orquestra expor a progressão do movimento da composição. Gato Barbieri surge a meio da peça mas o impacto maior é mesmo de Don Cherry. Composição ritmada, desregrada e impaciente.

Em "Communications #9" explora-se o poderio da amplificação com o guitarrista Larry Coryell a ser aqui o elemento central da peça. Composição abstrata e dramática em que a orquestra se mantém em modo expectante de forma a ceder espaço à improvisação de Larry Coryell na guitarra elétrica. Aqui prevalecem os fraseados inopinados e a provocação do feedback incutido.

"Communications #10" foca-se nas tonalidades graves e apresenta-se com um teor mais controlado e percussivo, em que a liberdade de improvisação é concedida à agilidade do trombonista Roswell Rudd. No entanto, não deixa de ser curioso que dois elementos da orquestra tenham também intervenções como solistas nesta peça; Steve Swallow, um dos cinco contrabaixos da orquestra, dá inicio a esta composição com um pequeno solo a servir como introdução enquanto que a meio da peça a orquestra fica suspensa para que o baterista Beaver Harris faça também um curto apontamento solista a par da improvisação de Roswell Rudd. Composição de estrutura mais moderada e acessível.

"Preview" corresponde ao momento de maior intensidade destas sessões através do exultante grito de Pharoah Sanders com o seu sax-tenor, sob a pujança do crescente pulsar da orquestra. Uma peça bem expressiva, rebelde, aflitiva e autêntica, naquela que é também a composição mais curta do registo.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Missão Amar-te - mARCIANO


1 2 Vidas (Marciano Homem de Marte/Jorge Vaz Dias)   1:18
2 Bissectriz (Marciano Homem de Marte)   4:06
3 Gaia (Marciano Homem de Marte)   3:14
4 Roleta Russa (Marciano Homem de Marte)   5:22
5 Missão Amar-te (Marciano Homem de Marte)   4:16
6 O Tempo Não Volta Atrás (Marciano Homem de Marte)   2:55
7 Punhado De Areia (Marciano Homem de Marte/MC Santiago)   1:32
8 Este Coração Não É O Meu (Marciano Homem de Marte)   4:45
9 Soldado (Francisco J. Resende)   5:05
10 Sem Remédio (Marciano Homem de Marte/F. Espanca)   4:05
11 Meumorial (Marciano Homem de Marte)   4:40
12 Tremor (Marciano Homem de Marte)   5:20
13 Costas Em Costas (Jorge Vaz Dias)   1:06

É difícil desassociar Marte como um símbolo bélico. Com origem na mitologia romana, como denominação divina do deus da guerra, o nome de Marte seria depois usado para batizar o quarto planeta do nosso sistema solar. Em 1898 foi publicado o fantástico livro "The War of the Worlds", em que H.G. Wells fantasia uma invasão extra-terrestre praticada por Marcianos que pretendem dominar a Terra. Nas vésperas do início da 1ª Guerra Mundial, Gustav Holst concluía a suite orquestral "The Planets" e atribuia a Marte o sub-título "The Bringer of War". Em tempos mais próximos, no ano de 1996, Tim Burton realizou "Mars Attacks!" uma obra cinematográfica centrada numa caótica invasão Marciana. Estes são apenas alguns exemplos conhecidos do simbolismo bélico de Marte, outros mais haverão. 

Chegados a 2025, deparamos-nos com um mundo algo insano em que neste momento parece que a única coisa que nos falta mesmo acontecer seria uma invasão extra-terrestre. No entanto, com um subtil jogo de palavras, mARCIANO inverte todo o sentido de uma inquietante viagem científica ao planeta belicoso e torna-a numa demanda pelo amor mais puro, em busca da única força que pode realmente unir, e convida-nos a todos para participar nela.

De novo em edição de autor, "Missão Amar-te" confirma mARCIANO como um herdeiro legítimo do cançonetismo português, capaz de expressar a sua sinceridade musical em canções pop de tonalidade mais escura e adulta, intimamente emolduradas por uma dinâmica maquinal que complementa a firme aliança de uma secção rítmica bem presente e enquadrada, composta por Rui Geada, no baixo, e Nuno Francisco, na bateria. David Wolf colaborou nos arranjos, nas guitarras e nos sintetizadores, e ainda assumiu todo o trabalho de produção; exceção para as músicas "Bissectriz" e "Missão Amar-te", gravadas anteriormente e produzidas por Paulo Pereira, e "Sem Remédio", uma co-produção mARCIANO/Ricardo Simões.

Amar é a missão e tem na faixa título a força de um hino maior, pleno de esperança e entrega, com tendências evidentes do estilo que se denominou como Música Moderna Portuguesa nos anos de 1980. Neste ponto, mARCIANO explora bem a Portugalidade da sua obra numa carinhosa devoção pelo passado em busca de inspiração divina para o presente. A sentida presença da guitarra Portuguesa de Carlos Amado em "Bissectriz" e "Este Coração Não É Meu", a fiel versão para "Soldado", original dos Sitiados, e a etérea adaptação do poema "Sem Remédio" de Florbela Espanca, reforçam a afeição de mARCIANO pelas suas raízes lusitanas. A poesia tem também o seu espaço próprio no registo, com "2 Vidas" a cumprir as funções de prólogo e "Costas Em Costas" a ser o epílogo. Ambos os poemas são da autoria de Jorge Vaz Dias e são loquazmente declamados pela venerável voz de António Cova. "Punhado De Areia" é o outro poema incluído no álbum e parece cumprir a função de interlúdio, com uma declamação profundamente visceral pela sua autora MC Santiago.

O grito urgente da consciência ambiental de "Gaia", o desespero e impotência do Homem perante a força da brutalidade humana em "Roleta Russa", os laivos neo-classicistas de "O Tempo Não Volta Atrás" e as incríveis reminiscências euro-pop de "Meumorial", são momentos ímpares e conscientes, habilmente convertidos como música eficaz, sincera, direta e muito atual mas ...  ainda há ... "Tremor", uma música extraordinária em que, logo numa primeira audição, temos a sensação de que fez sempre parte da nossa vida. Tem uma dimensão imensurável. É intensa, emotiva e arrepiante, extraordinariamente arrebatadora, e encontra-se envolvida pelo efeito mágico dos inebriantes violinos elétricos do britânico Matt Howden, mais conhecido pelo seu projeto solo como Sieben.

O álbum está editado nos formatos digital, vinil e CD, e pode ser adquirido em https://marcianodemarte.bandcamp.com/album/miss-o-amar-te ou escutado nas habituais plataformas digitais.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Back To Back - THE BRECKER BROTHERS BAND


 Lado A
1 Keep It Steady (Brecker Bump) (S. Khan/R. Brecker/D. Sanborn/L. Vandross)   6:20
2 If You Wanna Boogie ... Forget It (S. Khan/W. Lee/D. Grolnick)   3:52
3 Lovely Lady (R. Brecker/A. Willis/C. Crossley)   6:11
4 Night Flight (M. Brecker)   6:12
 Lado B
1 Slick Stuff (R. Brecker)   4:44
2 Dig A Little Deeper (W. Lee/D. Grolnick/A. Willis/D. Lasley)   3:57
3 Grease Piece (M. Brecker/R. Brecker/D. Sanborn/S. Khan)   5:41
4 What Can A Miracle Do (D. Grolnick/L. Vandross)   4:10
5 I Love Wastin' Time With You (M. Brecker/A. Willis/C. Crossley)   6:27

Editado em 1976, 'Back To Back' corresponde ao segundo álbum de estúdio dos Brecker Brothers, o notável coletivo norte-americano liderado pelos irmãos Randy e Michael. O núcleo da formação está assente no fluido desembaraço dos instrumentos de sopro, Randy Brecker, no trompete, Michael Brecker, no sax-tenor e na flauta, e David Sanborn, no sax-alto, devidamente apoiados pela destreza elétrica do guitarrista Steve Khan e do pianista Don Grolnick, e a contagiante cumplicidade de Will Lee, no baixo e na voz, ao lado do baterista Christopher Parker. Nomes consideráveis, e já bem firmados, que viriam a ser preponderantes nos anos vindouros.

A formação marcou o seu espaço, bem cedo, na música da década de 1970 com a primazia de uma fusão jazz/rock, bem encharcada na irrequieta estrutura de funky branco, a que não faltava alguma sensualidade soul. A eficácia de vigorosos riffs dos sopros, aliados aos fraseados escorregadios e à intensa expressividade dos solos, proporcionam momento incríveis e extraordinários a que é quase impossível não reagir; "Keep It Steady", "If You Wanna Boogie ...", "Night Flight", "Slick Stuff", "Dig A Little Deeper", "Grease Piece" e "I Love Wastin' Time With You" são peças excitantes, acentuadas por uma dinâmica balanceada e cativante, "Lovely Lady" e "What Can A Miracle Do" são músicas sensíveis, detentoras de uma toada morna e emocional. 

As vozes são também um ponto forte do registo. A prestação vocal de Will Lee é fulcral para o equilíbrio entre o desenvolvimento dos momentos instrumentais e o formato de "canção" com uma entrega desenvolta e determinada, por vezes humorística, mas os arranjos vocais do álbum pertencem a Luther Vandross e o resultado é bem audível. 

E há que não esquecer que Steve Gadd é o baterista de serviço nas faixas que encerram ambos os lados do vinil ...

Obra caraterística de uma época fértil em que a música de fusão procurava expandir fronteiras recorrendo a géneros correntes para experimentar novas ideias, técnicas e instrumentos, e aumentar o potencial de criatividade. Não sendo um álbum fundamental deste período, "Back To Back" carrega a sua essência. 

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Bummed - HAPPY MONDAYS


1 Country Song (Happy Mondays)   3:23
2 Moving In With (Happy Mondays)   3:36
3 Mad Cyril (Happy Mondays)   4:35
4 Fat Lady Wrestlers (Happy Mondays)   3:24
5 Performance (Happy Mondays)   4:06
6 Brain Dead (Happy Mondays)   3:08
7 Wrote For Luck (Happy Mondays)   6:04
8 Bring A Friend (Happy Mondays)   3:44
9 Do It Better (Happy Mondays)   2:28
10 Lazy Itis (Happy Mondays/Lennon/McCartney)   2:46

Os britânicos Happy Mondays foram os principais protagonistas do último grande ato da Factory Records, mítica editora independente Inglesa fundada por Tony Wilson em Maio de 1978. A par dos New Order, foram uma das bandas que mais rentabilizou o catálogo da histórica editora mas também são acusados, por alguns, de serem um dos principais responsáveis pelo colapso financeiro da Factory Records em 1992. E quem mais, senão Tony Wilson, teria tolerado o descontrolado e insano comportamento de uma banda como os Happy Mondays?

O título que os Mothers Of Invention, de Frank Zappa, usaram para o seu álbum de 1968, cuja capa parodiava o célebre 'Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band' dos Beatles, assenta que nem uma luva aos Happy Mondays através de um simples trocadilho - 'We're Only In It For The ... Drugs'. 

Mais do que uma banda, ou um projeto musical definido, os Happy Mondays eram como um ato de celebração, uma espécie de motivo para curtir o êxtase do momento, e há que não esquecer que estes são os anos de florescimento da cultura rave em Inglaterra, com a cidade de Manchester, berço legítimo da Factory Records e dos Happy Mondays, a servir como cenário de fundo ideal para a festa. E no entanto, apesar de tanta estroinice, os Happy Mondays até que funcionam muito bem a nível musical.
 
Editado em 1988, 'Bummed' corresponde ao segundo registo de estúdio dos Happy Mondays. É uma obra movida pela aspereza de um rock ácido e indefinido que se deixa envolver pelo balanço da música de dança e de algum psicadelismo. O resultado revela uma sonoridade obscura, estritamente balanceada pela consistência de uma massa sonora, impulsionada pela secção rítmica composta por Paul Ryder, no baixo, e Gary Whelan, na bateria. O vocalista Shaun Ryder é uma agradável surpresa pela capacidade nata de prender a atenção com uma expressividade vocal distinta, bem colocada e sempre muito presente. 'Bummed' inclui uma referência histórica, digna de registo. Do outro lado do vidro, envolto no trabalho de produção, esteve Martin Hannett. O célebre produtor associado à sonoridade inicial da Factory Records regressava assim à editora, após se ter afastado em 1982, para voltar a produzir uma banda da casa. 

A mistura de géneros tanto atraía os fans das raves como do indie-rock mas o que despertou o interesse geral na banda foi a força do single "Wrote For Luck", que representa o salto das origens rock da banda para o emergente ritmo pulsante do movimento acid-house. Outro foco de atenção no álbum encontra-se em "Lazy Itis", para a qual foi tomada emprestada, com os devidos créditos, uma parte da harmonia de "Ticket To Ride", dos Beatles. "Mad Cyril" expande-se para além da vulgaridade de uma música pop, "Bring A Friend" ressalta pelo brilho da guitarra de Mark Day enquanto "Moving In With", "Fat Lady Wrestlers" e "Do It Better" destilam a agilidade de alguns dos momentos de maior vitalidade do registo. Madchester a impor-se como a afirmação do movimento cultural britânico que protagonizou a transição geracional da década de 1980 para 1990.  

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Überjam - THE JOHN SCOFIELD BAND


1 Acidhead (Scofield/Bortnick/Murphy)   6:33
2 Ideofunk (Scofield)   4:44
3 Jungle Fiction (Scofield)   5:39
4 I Brake 4 Monster Booty (Scofield/Bortnick/Murphy/Deitch)   4:02
5 Animal Farm (Scofield)   5:36
6 Offspring (Scofield)   6:27
7 Tomorrow Land (Bortnick)   3:58
8 Überjam (Scofield/Bortnick/Murphy/Browden/Rodgers/Hart)   6:53
9 Polo Towers (Scofield)   5:29
10 Snap Crackle Pop (Scofield)   6:02
11 Lucky For Her (Scofield/Bortnick/Murphy)   3:12

Em 'Überjam', editado em 2002, o guitarrista norte-americano John Scofield e a sua jovem banda propõem uma viagem musical eclética que se desenvolve através de um diálogo transcendental entre a espiritualidade de elementos psicadélicos, a destreza da habilidade rítmica do funk e uma definida ideologia de fusão com novos elementos, como o drum'n' bass, o hip-hop e o sampler, em que o jazz serve como um ponto de união determinante, capaz de propiciar a fertilidade de um terreno imensurável para o improviso e para o desenvolvimento de uma linguagem universal, expansiva e moderna, que flutua descontraidamente na espontaneidade de uma pujante  jam session

Trata-se de um registo entusiasmante, muito vívido, impulsionado pelo desejo de criar música nova, abrangendo uma multiplicidade de elementos técnicos e artísticos contemporâneos, numa sintonia perfeita entre o legado histórico de John Scofield e os atributos de uma formação jovem que já o vinha acompanhando em digressão há dois anos. Foi durante esse período de tempo, na estrada, que Scofield se apercebeu do enorme potencial de Avi Bortnick como guitarrista ritmo e um nato manipulador de samples, Jesse Murphy como um baixista com uma grande sensibilidade artística e Adam Deitch como um exímio baterista funk dotado de uma exponente sensibilidade para o jazz. O conceito desta 'Überjam' começou então a ganhar forma através da interação desta formação como banda de apoio de John Scofield ao vivo. O teclista John Medeski e o saxofonista/flautista Karl Denson, viriam a juntar-se depois às gravações em estúdio para participar com algumas colaborações no registo.

O psdicadelismo de "Acidhead" lança o mote com o seu exotismo oriental passando logo de seguida para o sugestivo riff, com algo de linguagem da animação BD, de "Ideofunk". O ritmo não se perde e o perfume drum 'n' bass de "Jungle Fiction" mantém a direção certa do registo e até encaixa bem no fulgor hip-hop de "I Brake 4 Monster Booty", com direito a um breve rap por parte do baterista Adam Deitch. O jazz mostra-se ligeiramente prudente em "Animal Farm" e depois o registo entra numa fase momentaneamente 'pop' com a 'orelhuda' guitarra acústica de "Offspring", logo seguida de uma sugestiva tranquilidade rural em "Tomorrow Land". Sente-se o retorno da pujante essência do registo na base da faixa homónima, que inclui uma curiosa referência a "Blue Moon", e daqui segue-se para o denunciado fraseado à la Weather Report de "Polo Towers", para o show de bateria de Adam Deitch em "Snap Crackle Pop" até o registo concluir com um final moderado, servido pela comedida vertente experimental de "Lucky For Her".

Em cima de tudo isto, John Scofield improvisa ao seu melhor estilo sempre munido da sua guitarra elétrica Ibanez e muitos efeitos, e ainda deixa uma dissimulada referência gráfica, na capa do álbum, a duas individualidades por quem nutre um grande carinho e uma enorme admiração, Susan Scofield, a sua esposa, e Jimi Hendrix.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Crossroads - ERIC MARIENTHAL


1 The Sun Was In My Eyes (Patitucci/Marienthal)   5:50
2 Spoons (Ferrante)   6:42
3 Yellow Roses (Ferrante)   4:01
4 Upside Down (Patitucci/Marienthal)   6:39
5 Schmooze (Gambale)   4:28
6 Cross Country (Patitucci)   8:03
7 Hide & Seek (Patitucci)   5:01
8 Two Bits (Ferrante)   5:40
9 On The Eve Of Tomorrow (Corea)   5:51
10 Rain On The Roof (Patitucci)   6:03

Jazz da costa oeste norte-americana, com selo da prestigiada GRP, categorizado por uma sonoridade moderna, relativamente próxima do que se poderá considerar "comercial" dentro do género - estilo acessível e também denominado, bastas vezes, como smooth jazz. Normalmente, executado por músicos académicos que se prestam a execuções brilhantes com uma linguagem ordenada e muito bem produzida, executada dentro dos padrões lineares da música pop mas sempre focada no expressivo teor da sua inerente qualidade musical.   

'Crossroads' corresponde ao terceiro registo a solo do saxofonista Eric Marienthal, elemento integrante, à data, da Elektric Band de Chick Corea cuja reputada formação participa, à vez, na execução musical desta obra. Para além de Eric Marienthal, o elemento mais preponderante do álbum é o baixista John Patitucci que para além de assumir o trabalho de produção do registo com Marienthal ainda assina algumas das músicas. Os dois músicos são também os únicos elementos permanentes ao longo de todo o registo. Igual destaque para a exponencial prestação do mestre Chick Corea ao piano em três momentos chave do registo, em que o jazz se sente mais vivo através das músicas "Upside Down", "Cross Country" e "On The Eve Of Tomorrow". De entre os elementos da Elektric Band, o baterista Dave Weckl é quem acaba por ter uma participação mais discreta cingindo-se à moderada ambiência de "Schmooze", música que tem a assinatura do guitarrista Frank Gambale, o único elemento da Elektric Band que não participa neste registo. Aliás, não há lugar para guitarras neste álbum.

Mas nem só os elementos da Elektric Band são fundamentais para o admirável resultado final desta obra. O pianista Russell Ferrante, membro fundador dos Yellowjackets, banda também associada ao catálogo da GRP, imprime aqui muito do seu estilo, aromatizando naturalmente o registo com alguma da essência que carateriza o teor da sonoridade dos Yellowjackets, bem percetível em "Spoons" e "Yellow Roses", duas das composições que Russel Ferrante assina para este álbum. Junta-se ainda uma terceira composição de sua autoria, "Two Bits", exposta na tranquilidade de uma peça acústica que Marienthal rasga com o sax-soprano.

A registar ainda a forte importância de John Patitucci em algumas composições, particularmente interessante na vitalidade de "The Sun Way In My Eyes" e nas já mencionadas, "Upside Down" e "Cross Country", e as fantásticas prestações rítmicas de um irrepreensível Vinnie Colaiuta e de uma segura e consciente Terri Lyne Carrigton na bateria. Dave Witham e John Beasley, ambos nos teclados, têm prestações menos evidenciadas mas bem presentes, a que se junta ainda o nome de Alex Acuña, na percussão, para complementar as participações neste registo. 

Álbum efetivamente pontuado pela referência de nomes sonantes e capazes de sustentar toda a sua relevância com uma prestação exímia, resultante de sessões de gravação ao vivo em estúdio de forma a manter o contato entre os músicos e obter uma interação musical entusiástica e espontânea. 'Crossroads' comprova o fervor de uma atmosfera vibrante que resulta da conexão destes músicos com uma linguagem universal que os une sob a forma de .. música.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

The Art Of Tea - MICHAEL FRANKS


1 Nightmoves (M. Franks/M. Small)   4:03
2 Eggplant (M. Franks)   3:34
3 Monkey See - Monkey Do (M. Franks)   3:33
4 St. Elmo's Fire (M. Franks)   3:58
5 I Don't Know Why I'm So Happy I'm Sad (M. Franks)   4:16
6 Jive (M. Franks)   3:16
7 Popsicle Toes (M. Franks)   4:35
8 Sometimes I Just Forget To Smile (M. Franks)   3:45
9 Mr. Blue (M. Franks)   4:03 

Para além de deter um dos timbres vocais mais melosos dentro do jazz vocal mais comercial, Michael Franks revela uma venerável capacidade intelectual para escrever letras interessantes, em que aborda questões de caráter íntimo, imprimindo-lhes uma dimensão musical extrovertida e particularmente inteligente, exprimindo-se de uma forma divertida, sensual e muito própria. No entanto, até que ponto se poderá considerar este registo como jazz?

Para complicar a questão, Michael Franks está aqui acompanhando por uma formação de luxo com reconhecidas bases no ... jazz. A expressiva presença de três elementos dos Crusaders - Joe Sample (piano), Wilton Felder (baixo) e Larry Carlton (guitarra) - ajuda à elevada importância deste registo, a que ainda se junta o baterista John Guerin e as prestações pontuais de David Sanborn (sax-alto) e Michael Brecker (sax-tenor). As composições são todas assinadas por Michael Franks e apresentam a envolvente fragilidade de uma textura doce, macia, serena e extremamente agradável, capaz de cativar um vasto grupo de ouvintes desde o jazz, ao rock e até à pop ou mesmo à soul music

Apesar de uma experiência discográfica anterior, é a partir daqui que a obra de Michael Franks começa a ganhar expressão. Editado originalmente em 1975, 'The Art Of Tea' é realmente uma beleza de álbum, a que é difícil não se dar a devida importância. Registo muito detalhado e inteligente para ser rock, e muito melodioso e correto para ser jazz, caraterizado por uma sobriedade inerente a que não será alheia a postura tímida e erudita de Michael Franks. A excelência dos músicos completa o teor qualitativo do registo da melhor forma, através de uma leitura impecável das composições originais a que ainda se acrescenta o cunho pessoal que compõe a sonoridade de cada um destes músicos.

A perfurante guitarra de Larry Carlton em "Nightmoves", os dotes culinários de "Eggplant", o sax-alto de David Sanborn na delicada relação de "Monkey See - Monkey Do", o calor afetuoso que adorna a irresistível tonalidade de "St. Elmo's Fire", a contradição patente em "I Don't Know Why I'm So Happy I'm Sad", o vigoroso sax-tenor de Michael Brecker em "Jive", a cativante disposição de "Popsicle Toes", a proximidade blues de "Sometimes I Just Forget To Smile", a colorida delicadeza de "Mr. Blue" e, por fim, a presença incrível de Joe Sample em todas as frentes do registo, fazem deste álbum uma obra de referência.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A Jazzy Way - MARIA ANADON featuring FIVE PLAY


1 Old Devil Moon (E.Y. Harburg/B. Lane)   3:46
2 I Don't Know What Time It Was (L. Hart/R. Rodgers)   4:40
3 Confirmation (S. Jordan/C. Parker)   3:33
4 Comes Love (Sam H. Step/C. Tobias/L. Brown)   4:13
5 My One And Only Love (R. Mellin/G. Wood)   6:17
6 Stolen Moments (M. Murphy/O. Nelson)   4:21
7 Black Coffee (Paul F. Webster/S. Burke)   3:36
8 Devil May Care (T. Kirkley/B. Dorough)   2:51
9 Wouldn't It Be Loverly (Alan J. Lerner/F. Loewe)   3:50
10 You Don't Know What Love Is (D. Raye/Gene de Paul)   4:53
11 I'm Old Fashioned (J. Mercer/J. Kern)   2:57
12 Tenderly (J. Lawrence/W. Gross)   5:10
13 The Best Is Yet To Come (C. Leigh/Cy Coleman)   4:04
14 One Note Samba (J. Hendricks/António C. Jobim/N. Mendonça)   1:29

A baterista norte-americana Sherrie Maricle lidera a orquestra de jazz Diva, totalmente composta por elementos femininos, a partir da qual criou o quinteto Five Play, em 1999, em que a formação tem por base a secção rítmica da orquestra - Sherrie Maricle, na bateria, Noriko Ueda, no contrabaixo, e Tomoko Ohno, no piano - a que se juntam depois dois solistas - Jami Dauber, no trompete, e Janelle Reichman, no sax-tenor e no clarinete. Para este registo de 2006, intitulado 'A JazzyWay', o quinteto reformulou-se numa nova versão, denominada Five Play's Women of the World, em que os dois solistas foram "substituídos" pela Israelita Anat Cohen, em sax-tenor e clarinete, e pela cantora Portuguesa Maria Anadon.

O início do percurso discográfico de Maria Anadon pelos meandros do jazz português deu-se em 1995 com a edição do álbum 'Why Jazz?', gravado em Paço D'Arcos com suporte do quarteto feminino norte-americano Unpredictable Nature, que consistia na primeira pequena formação saída da estrutura da Diva Jazz Orchestra, onde já pontuava a baterista Sherrie Maricle. Onze anos depois, Anadon e Maricle reencontraram-se para a gravação de um novo álbum mas desta vez em terras norte-americanas, com passagem obrigatória por Nova Iorque, onde o caminho do jazz se fez sob a essência das lendas e onde Maria Anadon se sentiu dentro do sonho.

Obra de gabarito - muito deliciosa, segura, tranquila e persuasiva - em que Maria Anadon e as Five Play demonstram ter swing e jazz, muito jazz, para agarrar um repertório estritamente dominado por música norte-americana, e um ligeiro piscar de olho, mesmo para terminar, à música de expressão portuguesa com uma passagem rápida pela obra de António Carlos Jobim para Maria Anadon dar um ar da sua graça na sua língua materna. 

O registo desenvolve-se entre a decente interpretação de Maria Anadon e as notáveis intervenções de Anat Cohen, com o distinto apoio de uma atenta e desembaraçada secção rítmica que se move na firmeza de uma execução experiente e muito segura, garantido assim a autenticidade deste trabalho. O resultado final conclui-se como uma obra exemplar e dignificante que fica registada como o terceiro trabalho a solo de Maria Anadon.